Por Marcus Lopes.
Em março de 1964, um
movimento conservador e antidemocrático da sociedade civil-militar brasileira deu
início à ditadura no país.
Na noite de 31 de março de
1964, o céu do Rio de Janeiro estava, literalmente, coberto por nuvens
escuras. Em poucas horas, começou uma chuva forte, que não dava
trégua, e o aguaceiro avançou madrugada adentro. No Palácio Laranjeiras, então
sede do governo federal no Rio, as luzes permaneciam acesas. Era meio
que um período de transição administrativa, já que Brasília,
ainda inacabada, dividia, na prática, o centro do poder político com a
antiga capital. No gabinete principal do Laranjeiras, conforme relata o
escritor Lira Neto no livro Castello – A Marcha
para a Ditadura (editora Companhia
das Letras), o telefone não parava de tocar e foram longas e tensas
conversas, inclusive durante a noite, entre o presidente da
República, João Goulart, ministros e militares. Lá fora, a situação não era
melhor. No Palácio Guanabara, sede do governo estadual, o
ferrenho e incansável oposicionista Carlos Lacerda, líder da União
Democrática Nacional (UDN) e então governador da Guanabara, varou
a madrugada chuvosa em discursos inflamados contra Jango, disparados para emissoras
de rádio e em forma de mensagens para radioamadores de todo o país.
Na manhã seguinte, Jango
tinha motivos de sobra para preocupações. Horas antes, ainda na noite de
31 de março, o general Olympio Mourão Filho, comandante da IV Região Militar,
com base em Minas Gerais, autorizou o deslocamento de tropas do Exército
de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro. O objetivo da Operação
Popeye, como foi chamada em alusão ao hábito do comandante Mourão fumar cachimbo,
era a deposição de Goulart, o expurgo dos supostos comunistas do comando
do país e a formação de um novo governo, sob controle dos militares.
De São Paulo, tropas do II Exército, comandadas pelo general Amauri Kruel, também se dirigiam à antiga capital federal, pela Via Dutra e estacionaram no Vale do Paraíba, à espera das ordens para avançar. Kruel, amigo e compadre de Jango, ainda tentara, em uma das conversas por telefone ocorridas durante a madrugada chuvosa, convencer o presidente “a se distanciar dos comunistas” para conseguir cumprir o restante do seu mandato, que se encerraria em 1965. Diante da recusa do político, que alegava não poder romper com as forças populares que o apoiavam, Kruel lavou as mãos e aderiu aos militares rebeldes. Era o golpe em marcha.
“MINAS VEM AÍ”
Apesar da aparente
organização, rapidez de movimentos e sincronia entre os líderes, todo
o processo ocorreu meio de improviso e sem grande planejamento prévio.
Além de não haver consenso nas Forças Armadas sobre a real necessidade
da derrubada de Goulart do poder, Mourão Filho era considerado, até
pelos próprios colegas, um comandante bronco e intempestivo, e colocou as
tropas nas ruas antes do combinado, desencadeando precipitadamente
outras ações nos quartéis. Alguns colegas de patente teriam, inclusive,
tentado convencê-lo a recuar e aguardar um momento mais oportuno para as
manobras. Era tarde.
“Minas vem aí”, foi a frase que espalhou
como um rastilho de pólvora pelos comandos militares fluminenses e
contaminou os insurgentes na virada de 31 de março para o primeiro dia
de abril. Conforme registra o jornalista Lira Neto em seu livro, Mourão
Filho passou a noite em casa, vestido com um roupão de seda vermelho e
comandando seus subordinados pelo telefone. “Posso dizer com orgulho
de originalidade: creio ter sido o único homem do mundo que desencadeou uma
revolução de pijama”, registraria o general em seu diário.
Apesar do improviso tático
dos oposicionistas, Goulart resolveu não pagar para ver. Por volta do
meio-dia de 1º de abril, após mais uma conversa tensa com o ministro da
Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, o presidente, visivelmente cansado
e contrafeito, informou a Raul Ryff, seu assessor de imprensa: “Vou
sair daqui. Vou para Brasília. Isto está se transformando em uma armadilha”.
Com uma pasta de documentos e uma valise de roupas, Jango desceu para a
garagem do Laranjeiras, onde embarcou em um Aero-Willys preto, sem
chapa oficial, e ordenou ao motorista que seguisse para o Aeroporto Santos
Dumont, de onde embarcou para Brasília.
O mandatário tinha razões
para acreditar na arapuca que se armava contra ele. Precavido, passou
apenas poucas horas em Brasília e embarcou no começo da noite para o Rio
Grande do Sul, seu estado natal e principal base política. Em Porto
Alegre, era ensaiada uma resistência organizada pelo comandante legalista
do III Exército, general Ladário Pereira Teles, e pelo ex-governador e deputado
Leonel Brizola, cunhado de Jango.
Mas o país encontrava-se
rachado e havia divisões em praticamente todos os setores da sociedade
civil, imprensa e meios militares. De longe, os Estados Unidos
observavam tudo atentamente, mas de maneira discreta, por meio de
informações fornecidas pelo embaixador Lincoln Gordon. Apesar da discrição,
os americanos, que viviam no contexto da Guerra Fria com a União
Soviética (URSS), entrariam em campo para defender o sistema capitalista
brasileiro, em caso de necessidade, por meio da “Operação Brother Sam”:
total apoio tático e bélico aos antijanguistas.
Diante desse quadro complexo
e por não saber exatamente em quem confiar, inclusive dentro do
Palácio do Planalto, Jango desistiu de liderar a resistência e partiu
com a família para o Uruguai, poucos dias depois. O ex-presidente alegou
que saiu rapidamente de cena para evitar derramamento de sangue dos
grupos que o apoiavam, em caso de conflito civil. Mais tarde, no longo exílio
uruguaio, o líder populista confessaria o arrependimento por não ter, pelo
menos, lutado com as forças civis e militares que tinha ao seu
lado – e elas existiam – para tentar manter a legalidade, permanecer no poder e
evitar a instauração da ditadura.
“Havia militares dispostos a
resistir em defesa da democracia, da legalidade e da Constituição.
Eles ficaram aguardando uma ordem de resistência que nunca veio”, explica
o cientista político Paulo Ribeiro da Cunha, professor livre-docente da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro Militares
e Militância: uma Relação Dialeticamente Conflituosa (editora Unesp).
Cunha lembra que é
importante separar o joio do trigo. “É essencial não acreditarmos
que todos os militares são golpistas, fascistas ou reacionários. Muitos
deles, em 1964, defendiam a legalidade e a Constituição”, diz o professor. Ele
lembra que, justamente por isso, muitos integrantes das Forças Armadas
foram expulsos da corporação e perseguidos durante a ditadura que se
seguiu.
Com a retirada de Jango para Porto Alegre, na mesma noite de 1º de abril o Congresso Nacional declarou vago o cargo de presidente da República e as tropas que estavam de prontidão para a derrubada de Goulart deram meia-volta aos quartéis, sem disparar um único tiro. Assumiu provisoriamente a cadeira presidencial, na linha constitucional, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Mas o poder já não estava nas mãos dos civis.
ATO INSTITUCIONAL NÚMERO 1
Uma junta militar – formada
pelos ministros da Guerra, Aeronáutica e Marinha – assumiu o
controle da nação e, no dia 9 de abril, foi baixado o Ato Institucional
número 1 (AI – 1). Começava ali um regime de exceção que se estenderia
pelos próximos 21 anos e seria marcado pelo endurecimento do regime, perseguição
aos opositores políticos, denúncias de tortura nos porões da ditadura e
graves problemas macroeconômicos. O período também ficou marcado pela
censura à imprensa, cerceamento às manifestações artísticas e denúncias de
corrupção.
Naquele começo, porém, a
expectativa era outra. Aparentemente, os militares pretendiam apenas
promover a estabilidade política e devolver o poder aos civis algum tempo
depois. Tanto é que, apesar de autorizar a cassação dos mandatos
e dos direitos políticos de diversas personalidades, entre elas o
próprio Jango, Brizola e o líder comunista Luís Carlos Prestes, entre
muitos outros, o AI – 1 convocava eleições diretas presidenciais para 1965 e o
próprio ato institucional limitava sua vigência até 31 de janeiro
de 1966. Não foi o que aconteceu e a chamada “linha dura” dos militares
assumiu o comando da situação, radicalizando e estendendo a ditadura nos
anos seguintes.
A tese de apenas “livrar o
país da ameaça comunista” e o breve retorno à normalidade democrática
conquistou amplo apoio dos meios empresariais e parcela significativa da
sociedade civil, por meio da batalha da informação e apoio de parte da
grande imprensa. Isso explica a euforia que tomou conta das ruas das cidades e
das páginas dos jornais nos dias seguintes ao 31 de março, com chuvas de
papel picado e outras manifestações civis pró-militares.
No esteio dessa euforia, o
Congresso Nacional elegeu, pelo voto indireto, o primeiro presidente militar, o
marechal Humberto Castello Branco. Ex-chefe do Estado Maior do Exército
e coordenador operacional da campanha brasileira da Força Expedicionária
Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial, Castello tinha um
perfil discreto, inclusive dentro da corporação – não por acaso, os jornais não
tinham uma fotografia do novo mandatário para estampar a edição do dia
seguinte.
O perfil moderado facilitou
a eleição do marechal, que contou com o voto de políticos no
Congresso, como o ex-presidente e senador por Goiás Juscelino
Kubitschek, que almejava voltar ao poder em 1965. O político mineiro
posteriormente teve o mandato de senador cassado pela ditadura e foi
mais um dos expurgados pelo regime rumo ao exílio.
A relativa facilidade com
que a democracia foi derrubada e o fato de não ter havido conflitos
armados durante a deposição do antigo governo contribuiu para a sensação
de normalidade nas ruas do país. A ponto da atriz francesa Brigitte Bardot que,
em março de 1964, passava as férias com o marido Bob Zagury em
uma mansão em Búzios, na região dos lagos do Rio de Janeiro, ter
declarado em uma entrevista quando indagada sobre os acontecimentos:
“Adorei a revolução de vocês”.
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